Soneto presente


Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.
Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso falar eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.
Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.
Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.
José Carlos Ary dos Santos

Kyrie


Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!
José Carlos Ary dos Santos

Soneto imperfeito da caminhada perfeita


Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas,
Que possam perturbar nossa caminhada
Em que os poetas são os próprios versos do poema
E onde cada poema é uma bandeira desfraldada...
Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas
- O braço que bater há-de cansar
E os poetas são os próprios versos do poema.
Versos brandos... Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: sou a Hora,
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
Que possam perturbar nossa caminhada
Onde cada poema é uma bandeira desfraldada
E os poetas são os próprios versos do poema!
Sidónio Muralha

Ordem da Liberdade para Vasco Gonçalves

 

COMUNICADO

A Associação Conquistas da Revolução (ACR) tem a honra de comunicar a todos os seus associados e amigos que no passado dia 16 de Maio, o General Vasco dos Santos Gonçalves, referência primeira da nossa Associação, foi agraciado com a Ordem da Liberdade por S.Exa. o Presidente da República.


Anti-fascista, Militar de Abril, co-redactor do Programa do MFA, Primeiro-Ministro de Julho de 1974 a Setembro de 1975 no período mais criativo da Revolução dos Cravos, Vasco Gonçalves foi inquestionavelmente um dos mais ilustres Capitães de Abril.


Fazendo jus à sua opção de adesão ao então Movimento dos Capitães, sendo então já Coronel de Engenharia do Exército, sempre procurou ser parte igual do Movimento em conjunto com todos os camaradas, que muito respeitava, evitando qualquer liderança que a sua antiguidade pudesse suscitar.


Foi, porque assim o quis, um Capitão de Abril, da primeira e de todas as horas!


Por força do amor ao povo que somos ganhou o desamor dos contra-revolucionários.


Viverá para sempre no nosso coração, como o “Companheiro Vasco”, o que reforça a nossa inquebrantável vontade de lhe erigir um monumento.

A Direcção da ACR

RETRATO DE CATARINA EUFÉMIA


Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado.
Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita encarnada
que ponho no cabelo.
Trança de trigo roxo
Catarina morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.
Meu amor. Minha espiga. Meu herói
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.
José Carlos Ary dos Santos

Meu galope é em frente


Direis que não é poesia
e a mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam,
E porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das linhas perdidas
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.
Direis que não é poesia.
E a mim que importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?
Eu sigo e seguirei,
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas linhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
- por terra, mar e ar.
Direis que não é poesia
E a mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.
É andar, é andar!

Mário Dionísio


VIAGEM ATRAVÉS DA FESTA


Reivindicamos a alegria.
Reivindicamos as canções de liberdade.
Reivindicamos a música ordenadora do universo.
Reivindicamos as mãos dadas dos amantes.
Reivindicamos o sabor descoberto de todas as coisas.
Reivindicamos as pontes tranquilas.
Reivindicamos a invenção das cidades habitáveis.
Reivindicamos a palavra, o poema, o livro.

Reivindicamos a festa.
Reivindicamos esta arma.


Mário Castrim

Poema de Abril


A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.
Foi este o prodígio
de um dia de Abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.
Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.
Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.

Sidónio Muralha


Ladainha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira

Uma pequenina luz


Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha

Jorge de Sena

MULHER-RESISTENTE

À Mariana Janeiro em nome de todas
as mulheres que lutaram contra o fascismo

Eram tantas as torturas...
O Chicote sobre a carne
que o corpo te inchava
inchava
pelas vergastas cortado

Eram dias sobre noites
em que os olhos te queimaram
em que as veias te romperam
e os ouvidos te rasgaram

Eram meses sobre meses
na cela

isolada

Torturas quantas sofreste
minha irmã
sempre calada

Que à polícia não se fala
nem que se morra
à pancada!

Maria Teresa Horta.

(com este poema, o Fernando Samuel despedia-se, por uns tempos, do Cravo de Abril. Que não vamos deixar morrer.)

CANTIGA DE ABRIL


Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
reinaram neste país,
a conta de tantos danos,
de tantos crimes e enganos,
chegava até à raiz.

Qual cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver
o dia do despertar!
Tantos sem poder saber
com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz do cemitério
toda prisão e censura,
e o poder feito galdério,
sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerras de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar
sem sinal de se acabar
por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo
o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos
durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim altiva e nua
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Jorge de Sena

Por Abril - Éramos cinquenta mil


Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a afirmar o que se ouviu:
«agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu»

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
cada um mostrando,
bem à vista,
o cartão de militante comunista.

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a explicar
o sentido e os porquês
de sermos
o Partido Comunista Português.

Éramos cinquenta mil
a desfilar por Abril
- ali, na rua,
a garantir
que a luta continua.  


Fernando Samuel
1.3.2008

As armas harpas que são precisas

 




“Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passas?”
@manuel.alegre 1967, in “O canto e as armas”

TOMAR PARTIDO

Tomar partido é irmos à raiz
do campo aceso da fraternidade
pois a razão dos pobres não se diz
mas conquista-se a golpes de vontade.

Cantaremos a força de um país
que pode ser a pátria da verdade
e a palavra mais alta que se diz
é a linda palavra liberdade.

Tomar partido é sermos como somos
é tirarmos de tudo quanto fomos
um exemplo um pássaro uma flor.

Tomar partido é ter inteligência
é sabermos em alma e consciência
que o Partido que temos é melhor.

Ary dos Santos

Natal à beira-rio


É o braço do abeto a bater na vidraça!
É o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia!

David Mourão-Ferreira
Cancioneiro de Natal (1971)

Quando um Homem quiser


Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo, és meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo, és meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo, és meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo, és meu irmão

Ary dos Santos

Ladainha dos Póstumos Natais


Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
 em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira

Poema de Natal


        Para isso fomos feitos:
        Para lembrar e ser lembrados
        Para chorar e fazer chorar
        Para enterrar os nossos mortos —
        Por isso temos braços longos para os adeuses
        Mãos para colher o que foi dado
        Dedos para cavar a terra.
        Assim será nossa vida:
        Uma tarde sempre a esquecer
        Uma estrela a se apagar na treva
        Um caminho entre dois túmulos —
        Por isso precisamos velar
        Falar baixo, pisar leve, ver
        A noite dormir em silêncio.
        Não há muito o que dizer:
        Uma canção sobre um berço
        Um verso, talvez de amor
        Uma prece por quem se vai —
        Mas que essa hora não esqueça
        E por ela os nossos corações
        Se deixem, graves e simples.
        Pois para isso fomos feitos:
        Para a esperança no milagre
        Para a participação da poesia
        Para ver a face da morte —
        De repente nunca mais esperaremos...
        Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
        Nascemos, imensamente.

Vinicius de Moraes


Este Cravo que és tu

Faz amanhã seis anos que o colectivo do 'Cravo de Abril' se comprometeu a não o deixar morrer.  Eu sei que em seis anos muita coisa mudou nas nossas vidas, mas palavra dada é palavra honrada. Por isto, e da minha parte, continuarei a vir aqui publicar, de vez em quando, nem que seja um poema. Hoje não deixo um poema. Deixo um abraço a todo o colectivo do 'Cravo de Abril'. Todo, mesmo, incluindo quem já aqui não está.

Façamos todos um esforço e reguemos este belo Cravo, vermelho, porque de Abril.

(Em memória de José Caravela e António Maria Casquinha, mortos em Montemor-o-Novo pela GNR)


1
Aqui
nesta planície de sol suado
dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.

Aqui
onde agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas.

2
Quando os dois camponeses desceram às covas,
ante os punhos cerrados de todos nós,
chorei!

Sim, chorei
sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.

Chorei pelos mortos e pelos matadores
- almas de frio fundo.

Digam-me lá:
para que serviria ser poeta
se não chorasse
publicamente
diante do mundo?

José Gomes Ferreira

O COMUM DA TERRA


Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas.
Quem conheça o sul e a sua transparência
também sabe que no verão pelas veredas
da cal a crispação da sombra caminha devagar.
De tanta palavra que disseste algumas
se perdiam, outras duram ainda, são lume
breve arado ceia de pobre roupa remendada.
Habitavas a terra o comum da terra, e a paixão
era morada e instrumento de alegria.
Esses eras tu: inclinação da água. Na margem
ventos areias mastros lábios, tudo ardia.


Eugénio de Andrade
(poema dedicado a Vasco Gonçalves)

Meu 1º de Maio


Todos
que marchais pelas ruas
e deteis as máquinas e as fábricas,
todos
desejosos de chegar a nossa festa
com as costas marcadas pelo trabalho,
saí a 1º de Maio,
o primeiro dos dias.
Recebê-lo-emos, camaradas,
com a voz entrecortada de canções.
Primavera,
derretei a neve.
Eu sou operário,
este dia é meu.
Eu sou camponês,
este dia é meu.

Todos,
estendidos nas trincheiras
esperando a morte infinita,
todos
os que num carro blindado
atiram contra seus irmãos,
escutai:
Hoje é 1º de Maio.
Partamos ao encontro
do primeiro dos nossos dias,
enlaçando as mãos proletárias.
Calai vossos morteiros!
Silêncio, metralhadoras!
Eu sou marinheiro,
este dia é meu.
Eu sou soldado,
este dia é meu.

Todos,
das casas,
das praças,
das ruas,
encolhidos pelo gelo invernal,
todos
torturados de fome,
das estepes,
dos bosques,
dos campos,
saí neste 1º de Maio!
Glória à gente fecunda!
Desabrochai, primavera!
Verde campos, cantai!
Soai sirenes e apitos!
Eu sou de ferro,
este dia é meu.
Eu sou a terra,
este dia é meu!
.
Vladimir Maiakovski

NATAL


Hoje é dia de Natal.
O jornal fala dos pobres
em letras grande e pretas,
traz versos e historietas
e desenhos bonitinhos,
e traz retratos também
dos bodos, bodos e bodos,
em casa de gente bem.
Hoje é dia de Natal.
- Mas quando será de todos?


Sidónio Muralha

Quanto Morre um Homem



Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?


Ruy Belo

Tenho medo de perder a maravilha


Tenho medo de perder a maravilha
de teus olhos de estátua e aquele acento
que de noite me imprime em plena face
de teu alento a solitária rosa.


Tenho pena de ser nesta ribeira
tronco sem ramos; e o que mais eu sinto
é não ter a flor, polpa, ou argila
para o gusano do meu sofrimento.

Se és o tesouro meu que oculto tenho
se és minha cruz e minha dor molhada,
se de teu senhorio sou o cão,

não me deixes perder o que ganhei
e as águas decora de teu rio
com as folhas do meu outono esquivo.

Federico García Lorca

CAMARADA




Camarada é uma palavra bonita. Sempre. E assume particular beleza e significado quando utilizada pelos militantes comunistas.

O camarada é o companheiro de luta - da luta de todos os dias, à qual dá o conteúdo de futuro, transformador e revolucionário que está na razão da existência de qualquer partido comunista.
O camarada é aquele que, na base de uma específica e concreta opção política, ideológica, de classe, tomou partido - e que sabe que o seu lugar é o do seu partido, que a sua ideologia é a da classe pela qual optou.
O camarada é aquele com cujo apoio solidário contamos em todos os momentos - seja qual for o ponto da trincheira que ocupemos e sejam quais forem as dificuldades e os perigos com que deparamos.
O camarada é aquele que nos ajuda a superar as falhas e os erros individuais - criticando-nos com uma severidade do tamanho da fraternidade contida nessa crítica.
O camarada é aquele que, olhando à sua volta, não vê espelhos... vê o colectivo - e sabe que, sem ter perdido a sua individualidade, integra uma outra nova e criativa individualidade, soma de múltiplas individualidades.
O camarada é aquele que, vendo a sua opinião minoritária ou isolada, mas julgando-a certa, não desiste de lutar por ela - e que trava essa luta no espaço exacto em que ela deve ser travada: o espaço democrático, amplo, fraterno e solidário, da camaradagem.
O camarada é aquele que, tão naturalmente como respira, faz da fraternidade um caminho, uma maneira de ser e de estar - e que, por isso mesmo, não necessita de a apregoar e jamais a invoca em vão.
O camarada é aquele que olhamos nos olhos sabendo, de antemão, que lá iremos encontrar solicitude, camaradagem, lealdade - e sabemos que esse olhar é uma fonte de força revolucionária.
O camarada é aquele a cuja porta não necessitamos de bater - porque a sabemos sempre aberta à camaradagem.
O camarada é aquele que jamais hesita entre o amigo e o inimigo - seja qual for a situação, seja qual for o erro cometido pelo amigo, seja qual for a razão do inimigo.
O camarada é o que traz consigo, sempre, a palavra amiga, a voz fraterna, o sorriso solidário - e que sabe que a amizade, a fraternidade, a solidariedade, são valores humanos intrínsecos ao ideal comunista.
O camarada é aquele que é revolucionário - e que não desiste de o ser mesmo que todos os dias lhe digam que o tempo que vivemos é coveiro das revoluções.

Camarada é uma palavra bonita - é uma palavra colectiva: é tu, eu, nós: é o Partido. O nosso. O Partido Comunista Português.

José Casanova
in Avante!, 20.6.2002

POEMA

AMIGO


Mal nos conhecemos
inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
de boca em boca,
um olhar bem limpo,
uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
um coração pronto a pulsar
na nossa mão.

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!


Alexandre O'Neill

Hay un almanaque lleno de 26


¿Cuestión de julios?
Más o menos siempre es julio.
¿Cuestión de hombres más o menos?
Por ahí andan.
¿Cuestión de decisiones?
Más o menos, casualmente,
momento más ser humano suman 26.

¿Cuestión de seres superiores?
No lo creo.
¿Cuestión de hombres con “H” grande?
Eso sí.
Si le cupiera más de un corazón
a un ser humano,
cada de uno de ellos
tuvo de seguro 26.
Amanece,
y a cualquier hora se siente,
pero ahora está amaneciendo.
¿Cuestión de esquemas y valores?
No lo dudo.
¿Cuestión de haber nacido a tiempo?
Puede ser.
¿Cuestión de mostrarse similares?
Siempre hay tiempo:
hay un almanaque lleno de días 26.
Amanece.

Noel Nicola (1968)

RETRATO DE CATARINA EUFÉMIA


Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado.


Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita encarnada
que ponho no cabelo.

Trança de trigo roxo
Catarina morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.

Meu amor. Minha espiga. Meu herói
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.

José Carlos Ary dos Santos

13 de Fevereiro de 1928
19 de Maio de 1954

Meus Irmãos...

Meus irmãos

É preciso atrelar os nossos poemas
à charrua do boi magro
É preciso que este se enterre até aos joelhos
na vaza dos arrozais
É preciso que eles façam todas as perguntas
É preciso que recolham toda a luz
É preciso que os nossos poemas como marcos quilométricos
balizem as estradas
É preciso que sejam o sinal a anunciar a aproximação do adversário
É preciso que batam tambor na selva


E enquanto na terra houver um único país ou um único homem escravo
E enquanto no céu restar nem que seja uma única nuvem atómica
É preciso que os nossos poemas dêem tudo por tudo, corpo e alma para a grande liberdade.

Nazim Hikmet

TOMAR PARTIDO


Tomar partido é irmos à raiz
do campo aceso da fraternidade
pois a razão dos pobres não se diz
mas conquista-se a golpes de vontade.


Cantaremos a força de um país
que pode ser a pátria da verdade
e a palavra mais alta que se diz
é a linda palavra liberdade.

Tomar partido é sermos como somos
é tirarmos de tudo quanto fomos
um exemplo um pássaro uma flor.

Tomar partido é ter inteligência
é sabermos em alma e consciência
que o Partido que temos é melhor.

Ary dos Santos

Memória


"Conhecer-te foi a maior felicidade da minha vida... podes crer, eu esperava por ti, sabia que, em qualquer parte do mundo, tu existias... e foi bom ver-te chegar, com a tua amizade total, com o teu riso aberto, com os teus livros dentro da camisa, com a tua timidez exposta, com as tuas convicções fortes, com essa força interior que conforta todos os que te conhecem.
Quando te vi chegar, soube que tinha chegado o meu amigo, aquele em quem eu confio mais do que em mim próprio, a quem confidenciarei tudo o que jamais direi seja a quem for...
Interrompe-o Francisco, procurando disfarçar a comoção: Se continuas assim, fazes-me chorar. Vasco põe um sorriso terno: Chora, então, porque eu vou continuar..."


O Caminho das Aves, de José Casanova

POEMA


OS MENINOS NASCEM


Vós podeis, tiranos, forjar ainda mais sólidas algemas,
chapear de aço as paredes das nossas e vossas cadeias,
e fazê-lo-eis;

Vós podeis, tiranos, cravar mais fundo as vossas baionetas,
esmagar-nos nas ruas debaixo das patas dos vossos cavalos,
e fazê-lo-eis;

Vós podeis, tiranos, roubar, incendiar, fuzilar sem descanso,
vedar os caminhos ainda livres, envenenar as fontes ainda puras,
e fazê-lo-eis;

Vós podeis, tiranos, vir de novo descarregar a vossa cólera
sobre Oradour,
lançar vossa chuva de raios sobre nosso humano desejo de viver,
e fazê-lo-eis,

Vós podeis, tiranos, inventar ainda piores suplícios,
mordaças mais espessas, baixezas mil vezes mais desumanas
para Buchenwald,

inutilmente o fareis:

Esta simples criancinha dormindo em seu berço,
este menino ainda na barriga de sua mãe, olhai
como vos fitam
serenos e terríveis.


Papiniano Carlos

(publicado por Fernando Samuel em 7.11.2008)