POEMA

SONETO PRESENTE


Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.


José Carlos Ary dos Santos

A CAÇA ÀS BRUXAS (7)

ANTECEDENTES


Assumindo o risco de abusar da paciência dos visitantes do Cravo de Abril, dedicarei ainda três posts ao tema Caça às Bruxas: dois registando acontecimentos e situações que antecederam a operação e o último para fazer um breve balanço de todo o processo.

Como é evidente, a Caça às Bruxas não surgiu do nada nem é apenas uma iniciativa desgarrada levada a cabo pelo anticomunista paranóico Joseph MacCarthy.
Repetindo: a operação insere-se na brutal ofensiva anticomunista desencadeada nos EUA logo após o triunfo da Revolução de Outubro.
O facto de, pela primeira vez na história, a classe operária ter conquistado o poder num país, ter construído o primeiro Estado proletário do mundo e ter iniciado a construção de uma sociedade nova, liberta da opressão e da exploração, socialista - este facto aterrorizou o grande capital internacional.
E todos os recursos, meios e métodos foram requisitados para a ofensiva visando liquidar à nascença a jovem revolução e impedir a propagação do seu exemplo noutros países.

O Partido Comunista dos EUA - criado em 1920 - foi, naturalmente, o alvo primeiro e principal dessa ofensiva.
Sob pretextos vários, os militantes comunistas eram perseguidos e presos: «o perigo vermelho» passou a ser tema diário nos média, acompanhado das inevitáveis «informações» sobre as «injecções atrás da orelha», as «criancinhas devoradas ao pequeno almoço» e outros argumentos semelhantes...

Por essa altura, as técnicas de propaganda sofrem um poderoso impulso nos EUA: «controlar as massas e fabricar consentimento» é o objectivo traçado.
Dito de outra forma: de acordo com os mecanismos da democracia norte-americana, «o país deve ser dirigido por uma elite de cidadãos»; os outros «têm apenas de ficar sossegados e concordar», e «para que isso aconteça, é necessário controlar o que eles pensam e arregimentá-los como soldados» - pelo que «controlar a opinião pública e assegurar que os cidadãos fiquem afastados da vida pública», é a grande questão...
Dito ainda de uma outra forma: não se trata de saber se a nossa democracia é perfeita: o que é necessário é que a maioria acredite que ela é perfeita e aja em conformidade com essa crença...
Há que reconhecer que tais técnicas de propaganda registaram assinaláveis (e dramáticos) êxitos, não apenas nos EUA mas praticamente em todo o mundo.

Em 29 de Junho de 1940, o Congresso dos EUA aprovou uma lei (Alien Registration Act) que proibia a manifestação de ideias pondo em causa o governo ou defendendo outro sistema que não fosse o capitalismo dominante...
A mesma lei, obrigava a que todos os estrangeiros com mais de 14 anos residentes nos EUA fizessem uma declaração com o registo das suas convicções políticas...
Obviamente, o não cumprimento da lei era considerado um «acto antipatriótico»...

Estava lançada a ofensiva «legal» contra o PCEUA e contra todas as organizações de esquerda.
De imediato foi lançada uma vasta operação de busca de «pessoas suspeitas de antipatriotismo» - que o mesmo era dizer: de «vermelhos»...

Pouco depois, onze dirigentes do PC foram presos e, após um julgamento que se arrastou por vários meses, foram condenados a pesadas penas de prisão.
Logo a seguir, são presos cerca de cinquenta militantes comunistas... - e por aí fora, numa escalada que seria atenuada durante a II Guerra Mundial mas que irromperia, brutal, logo que o nazi-fascismo foi derrotado e o prestígio da União Soviética corria mundo.

Este caldo de cultura intolerante e anticomunista é, então, um antecedente da Caça às Bruxas dirigida por MacCarthy.
E é de toda uma ininterrupta sucessão de factos semelhantes, ocorridos ao longo dos tempos e até aos dias de hoje, que é feita a democracia dos EUA...

POEMA

RETRATO DE ALVES REDOL


Porém se por alguém não foi ninguém
cantou e disse flor canção amigo
a si o deve. A si e mais a quem
floriu cresceu cantou lutou consigo.

Homem que vive só não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo com todos ficar vivo.

Nado-vivo da morte. É isso. É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
Forjar o conteúdo pela forma:
marrar até morrer. E dar por isso.


José Carlos Ary dos Santos

A CAÇA ÀS BRUXAS (6)

«A LISTA DOS VERMELHOS»
«O CASAL ROSENBERG»



Em Junho de 1950, três ex-agentes do FBI e um produtor de televisão elaboraram uma lista com 151 nomes de escritores, realizadores e actores «vermelhos» - tudo nomes «novos», isto é: que não constavam das listas da Comissão de MacCarthy.

Essa lista foi elaborada a partir dos arquivos do FBI e de uma busca minuciosa no jornal Daily Worker, órgão do Partido Comunista dos EUA.

«A lista dos vermelhos» foi enviada a todos os directores de estúdios cinematográficos, os quais, de imediato, suspenderam os 151 acusados, «até serem ouvidos pela Comissão» - após o que, se convencessem a Comissão de que estavam inocentes, voltariam a ser readmitidos»... - «convencer a Comissão» significava «confessar o crime, mostrar arrependimento e denunciar outras pessoas»...

É nesse mesmo ano de 1950 que tem início um processo que viria a ter enorme impacto em todo o mundo, iniciado com a prisão do «casal Rosenberg», sob a acusação de fazerem espionagem a favor da União Soviética.
O julgamento - que durou 9 meses - constituiu uma autêntica farsa: tratava-se, afinal, de o tribunal corroborar a decisão de «culpados» previamente decidida pela polícia...
E o tribunal assim fez: em 29 de Março de 1951, Julius e Ethel Rosenberg foram condenados à morte.
A principal testemunha de acusação era um soldado: David Greenglass, irmão de Ethel Rosenberg...

Contra a condenação, ergueu-se em todo o mundo (e nos própiros EUA), uma imensa vaga de protestos, designadamente envolvendo personalidades como Einstein e Jean Cocteau, Frida Kahlo e Dashiel Hammett, Pablo Picasso e Fritz Lang, Brecht e o Papa Pio XII.

Mas a decisão de executar Julius e Ethel Rosenberg estava tomada desde há muito: desde antes, mesmo, de eles serem presos e acusados...
Nos meses que antecederam a execução, milhares de pessoas manifestaram-se em dezenas de países, contra aquilo que Jean Paul Sarte classificou como um «linchamento que mancha de sangue toda uma nação».
E horas antes do «linchamento», Picasso, no jornal do PCF - L'Humanité - apelava à acentuação dos protestos: «As horas contam, os minutos contam. Não deixemos ocorrer este crime contra a humanidade».

Em 19 de Junho de 1953, Julius Rosenberg e Ethel Rosenberg foram executados na cadeira eléctrica, na prisão de Sing Sing.
Até minutos antes da execução contiuaram a negar a acusação de espionagem.

Em 2001, David Greenglass, cujo depoiamento fora decisivo para a condenação da irmã e do cunhado, viria a confessar que mentiu no julgamento:
«Eles ameaçaram prender a minha mulher e os meus filhos se eu não colaborasse. E eu não podia sacrificar a minha mulher e os meus filhos pela minha irmã».
E acrescentou: «mas eu não sabia que eles iam ser condenados à morte»...

POEMA

A PESCA


O bafio o safio a enguia o atum
um para todos todos para um
mas nenhum por todos
e todos por nenhum.
Ai a raiva Ai a raiva
de pescar em jejum.

Amadores da fala das marés
cicatrizes da faina amadizes da gala
duma cauda de renda duma onda de espuma
este mar aprendiz da vossa força
aprende a ser o vosso
ou de coisa nenhuma.

Obrigai-os a dar-vos o que a vós
deve em suor e choro.
Quando dizeis em coro
à uma à uma à uma
se não for vosso o barco
há-de ser vossa a voz
ou de coisa nenhuma.

Uma lua uma vela uma lula uma estrela
que lindo e mole é tudo
mas quem dará por elas
mais do que um pão de silêncio uma pedra de vinho
Ah não!
deveis vencê-las
às vagas que vos saem ao caminho.

Garanhões das correntes
campeões
dos músculos da água
ide
ide e voltai contentes
com vossas redes cheias dos latentes
peixes da nossa mágoa.

Trazei monstros marinhos e ancestrais
piranhas tubarões moreias e serpentes
mas sobretudo os peixes canibais
que se nutrem de gente.
Despejai-os na lota como ao ódio
escamado que vos cobre:

Durante a luta
haveis de ver quem morre.


José Carlos Ary dos Santos

A CAÇA ÀS BRUXAS (5)

A DIGNIDADE DE DASHIEL HAMMETT

Dashiel Hammett - o criador do policial negro - foi (é) um dos maiores escritores norte-americanos.
Quando MacCarthy mandou retirar de todas as bibliotecas públicas dos EUA «30 mil livros escritos por comunistas e simpatizantes», os livros de Hammett encontravam-se, naturalmente, entre os banidos...

Hammett era membro do Partido Comunista dos EUA e Presidente do Congresso dos Direitos Civis de Nova Iorque, organização comunista muito activa no apoio e na solidariedade às organizações a activistas de esquerda.

No processo da Caça às Bruxas, Dashiel Hammett foi submetido a três longos e cerrados interrogatórios: o primeiro, em Julho de 1951; os dois restantes, em Março de 1953.
Passou vários meses numa prisão de alta segurança, onde foi tratado como se fosse um terrível criminoso - e onde lhe foi atribuída a tarefa de limpar as retretes...

Sabia-se que, nesses interrogatórios, Hammett destroçara os inquisidores - entre eles o próprio MacCarthy - com a sua inabalável recusa em prestar declarações, fosse sobre o que fosse.
Mas só agora - com a publicação dos relatos integrais desses interrogatórios (Dashiel Hammett/Interrogatoires, Editions Allia, Paris, 2009) - se ficou a conhecer, com rigor, o que foram aquelas alucinantes sessões.

Estes «Interrogatoires» são um documento notável que nos mostra como, à demência persecutória, ameaçadora e repressiva das bestas, Hammett contrapôs a sua corajosa e serena dignidade.
Na verdade, Hammett recusou responder a tudo, inclusive a questões cujas respostas não o incriminariam mesmo na óptica dos fanáticos inquisidores.

Mais tarde, quando a sua companheira - Lillian Helmann, também militante comunista e também na «lista negra» - lhe perguntou por que não tinha respondido a essas coisas que eram do conhecimento público e que não o incriminariam, Dashiel Hammett respondeu simplesmente:

«Só sei que tinha que fazer o que fiz. Por uma questão de princípio. Mesmo que as consequências disso não fossem apenas a cadeia e implicassem a perda da própria vida, eu teria feito o mesmo».

POEMA

O BURGUÊS


A gravata de fibra como corda
amarrada à camisa mal suada
um estômago senil que só engorda
arrotando riqueza acumulada.

Uma espécie de polvo com açorda
de comida cem vezes mastigada
de cadeira de braços baixa e gorda
de cómoda com perna torneada.

Um baú de tolice. Uma chatice
com sorriso passado a purpurina
e olhos de pargo olhando de revés.

Para dizer quem é basta o que disse
é uma besta humana que rumina
é um filho da puta é um burguês.


José Carlos Ary dos Santos

A CAÇA ÀS BRUXAS (4)

HÁ LODO EM KAZAN


Há os que traem porque não conseguiram resistir - mas continuam do mesmo lado da barricada e prosseguem a luta.
Há os que traem porque não conseguiram resistir - e se vendem e passam, com armas e bagagens, para o outro lado da barricada.

Elia Kazan foi um dos vendidos - e talvez o mais degradado de todos eles.
Era membro do PC dos EUA. Denunciou à Comissão dezenas de camaradas e amigos seus - os quais foram presos e viram as suas carreiras arruinadas e as suas vidas destruídas.
Até ao fim da vida, Kazan não apenas não tinha lamentado o que fez, como se mostrava satisfeito com o que tinha feito.

No plano profissional, ao contrário de Dmytryk - que se transformou num realizador vulgar - Kazan continuou a exibir o seu talento em filmes de grande qualidade.
Mas, naturalmente, também com orçamentos à medida dos seus desejos...
Registe-se, no entanto, que as vantagens financeiras que a traição proporcionou a esses vendidos, tinha a ver, também com as suas vidas pessoais e particulares.
Orson Welles pôs o dedo na ferida quando disse, referindo-se expressamente a Kazan mas falando para todos os vendidos, que «eles venderam as suas consciências a troco da casas com piscina»...

Dis filmes realizados por Kazan após a traição, emerge o célebre Há Lodo no Cais - elogiadíssimo e premiadíssimo.
Ora a verdade é que, tratando-se de um filme notável em vários aspectos, ele é, também e de facto, uma autêntica apologia da delação - o que não surprende se tivermos em conta que Há Lodo no Cais é fruto do trabalho conjunto de dois delatores: Kazan e o argumentista Bud Schulberg...

Em Setembro passado, aquando da comemoração do 100º aniversário do nascimento de Kazan pela Cinemateca Nacional, alguém comentou assim essa parte da vida de Kazan:
«Elia Kazan corre o risco de ser lembrado mais pelo seu papel na "caça às bruxas" dos anos 50. Tiremos isso já do caminho: em 1952, acossado pela House Un-American Activities Comittee, ferramenta do senador Joe MacCarthy para tentar extirpar o comunismo da América, Elia Kazan, que havia feito parte do Partido Comunista Americano nos anos 30, denunciou vários colegas que, ao longo dessa década, não mais arranjaram emprego no seu ramo. Imoral? Desprezível? Talvez, mas, por um lado, apenas Kazan sabe as pressões a que esteve sujeito e, por outro lado, tal facto não belisca em nada uma das mais brilhantes e influentes carreiras da época dourada de Hollywood»
Dispenso-me de comentar em pormenosr esta espécie de manual do bom delator e passo adiante:
É certo que estamos a falar de um dos mais talentosos realizadores norte-americanos. Mas não é menos certo que estamos igualmente a falar de um indivíduo imoral e desprezível (sem pontos de interrogação...)
E não sou eu, apenas, que o digo: dizem-no muitos homens do cinema norte-americano e mundial e confirma-o... o próprio Kazan - com adiante veremos.

Em 1996 e 1999, Kazan viu o conjunto da sua obra premiado, respectivamente, com o Urso de Ouro do Festival de Berlim e com o Óscar de Carreira, em Hollywood.

Na cerimónia de entrega do Óscar - e nos dias que se lhe seguiram - dezenas de actores fizeram ouvir o seu protesto pela atribuição do prémio a tal pessoa. Entre os que protestaram e (ou) vaiaram Kazan, estão Richard Dreyfuss, Nick Nolte, Ed Harris, Ian Mckellen, Rod Steiger, Sean Pen (cujo pai foi uma vítima do maccarthismo).

Em Berlim, onde se deslocou para receber o tal Urso, Kazan mostrou que «imoral» e «desprezível» são palavras demasiado suaves para qualificar a abjecção que foi o seu comportamento.
Tendo-lhe sido perguntado o que pensava das práticas da Comissão de MacCarthy, porque denunciara os seus amigos e se estava arrependido do que fizera, Kazan respondeu:

«Concordei com tudo o que a Comissão fez. Concordei e colaborei com os inquéritos. Estou convencido que as liberdades americanas estiveram ameaçadas por um complot comunista -e entre a consciência e os amigos, escolhi a consciência. Não estou arrependido de nada, não foi um erro».

Assim afirmou Kazan a sua orgulhosa condição de delator e de herdeiro político e ideológico do fascista, sádico e psicopata MacCarthy.
Assim confirmou Kazan que, na outra face do grande homemde cinema que é, mora um homenzinho minúsculo, vil, rasteiro, nojento.
Assim confirmo eu que há lodo em Kazan.

POEMA

O TURISMO


Visitar este país
até à última gota:
O porco e o Porto a bola e a bolota
o que é como quem diz
itinerar a derrota.

Tudo tem lugar no mapa
Paris Washington Moscovo
Em Itália vê-se o papa
em Lisboa vê-se o povo.

Welcome Bienvenus Salud Wilkommen Viva
a sífilis saúda-vos saúda-vos a estiva
desta carga de heróis em carne viva
nociva mas barata
vindes matar a sede com uva
beber o sumo de ócio que nos mata.

Desemborcais nos cais desembolsais demais
mas não sabeis
as coisas viscerais as coisas principais
deste país azul
com mais hotéis do que hospitais
talvez por ser ao sol talvez por ser ao sul.

Aqui ao pé do mar bordamos a tristeza
as toalhas de mão as toalhas de mesa
que levais para casa Souvenir
deste povo sem pão
que se cose a sorrir.

Aqui ao pé do rio gememos a saudade
nosso fado submisso nossa água a correr.
Canção de mal devir Souvenir Souvenir
deste povo de trégua
que se canta a morrer.

Aqui ao pé do vento forjamos o lamento
dum país que se vende a peso nos prospectos
tanto de sol ardente tanto de cal fervente
e uma nódoa de céu nos xailes pretos.

Aqui ao pé do fel gritamos o segredo
do que parece fácil neste país de luz:

é apenas a fome.

É apenas o medo.

É apenas o sangue.

É apenas o pus.


José Carlos Ary dos Santos

A CAÇA ÀS BRUXAS (3)

«A LISTA NEGRA»


No dia seguinte à condenação dos Dez de Hollywood, em 25 de Novembro de 1947, a Comissão de Actividades Anti-Americanas anunciou a primeira «Lista Negra» de cidadãos norte-americanos suspeitos de simpatias comunistas e, portanto, «antipatriotas» e «traidores» que preparavam «um complot para derrubar o governo dos EUA»...

Muitos eram ligados à indústria cinematográfica e ao mundo do espectáculo; muitos outros eram cientistas, professores, sindicalistas - e, todos, suspeitos de pertencer, ter pertencido, vir a pertencer, ou simpatizar com o Partido Comunista dos EUA...

Essa primeira «Lista Negra» que, até 1952, viria a ser aumentada, incluia centenas de nomes conhecidos de actores, realizadores, escritores, músicos, entre eles:
Orson Welles, Bur Ives, José Ferrer, Lee J. Cobb, Edie Albert, Judy Holliday, Gary Cooper, Robert Taylor, Elia Kazan, John Garfield, Edward G. Robinson, Joseph Losey, Charles Chaplin, Bertolt Brecht, Jules Dassin, Robert Rossen, Martin Ritt, Arthur Miller, Howard Fast, Dashiel Hammett, Richard Wright, Irwing Shaw, Bud Schulberg, Langston Hugues, Canada Lee, Paul Robeson, Hans Eisler, Pete Seger, Aarons Copland, Abraham Polonsky, Burgess Meredith, Sterling Haiden, Leonard Bernstein
.

A Comissão dispunha de uma outra «lista»: a dos bufos - gente do cinema, também, que colaborava activamente na «caça às bruxas», espiando e denunciando colegas.
Desses bufos, destacaram-se, entre vários outros, Ronald Reagan, Adolphe Menjou e Walt Disney.
(registe-se o facto, por demais significativo, de, ligados a este sinistro processo estarem dois futuros presidentes dos EUA: Nixou e Reagan - e acrescente-se o facto de o apoio de MacCarthy a Eisenhower ter vindo a ser decisivo para a eleição deste à presidência dos EUA)

Corajosas acções de solidariedade com os perseguidos e de protesto contra as práticas da Comissão, foram levadas à prática, entretanto.
Entre os que assumiram publicamente essa postura, contam-se John Huston, Howard Hawks, Lauren Bacal e Humphrey Bogart - estes dois, particularmente activos no combate à intolerância, chegaram a promover, a dada altura, rm Washington, uma marcha contra a caça às bruxas.

Muitos dos incluídos na «Lista Negra» não resistiram aos interrogatórios e confessaram o «crime», o que significou, nuns casos, confessarem o que os inquisidores queriam que confessassem; noutros casos, confessarem mais, até, do que lhes era pedido...
Outros, após terem recusado prestar declarações, vieram posteriormente a ceder, como forma de salvarem as suas carreiras, casos, entre outros, de José Ferrer, Judy Holliday, Canada Lee, Martin Ritt.
Houve ainda os que se transformaram em activos delatores, entre eles Gary Cooper, Sterking Hayden, Robert Taylor, Bud Schulberg, Elia Kazan.


Dois casos:

1 - Robert Taylor: foi chamado à Comissão porque participara, em 1944, num filme intitulado «Canção da Rússia» - filme que após o fim da guerra, passou a ser considerado como «muito perigoso», pelo facto de mostrar «russos a sorrir». Ora, segundo a Comissão, mostrar «essa gente a sorrir é fazer propaganda comunista»...
Acrescia que, no filme, o personagem desempenhado por Robert Taylor cometera o gravíssimo crime de «mostrar simpatia e sorrir para o actor que representava um camponês russo»...
No decorrer do interrogatório, Taylor declarou-se «profundamente arrependido» de ter entrado em tal filme e, para que a Comissão não tivesse dúvidas sobre o seu profundo arrependimento, informou que tinha «ouvido dizer que Howard Silva, Karen Morley, Lester Cole ( e mais uns quantos) eram comunistas»...

2 - John Garfield: é considerado um dos maiores actores da história do cinema. Celebrizado pelo desempenho de papéis em que «personificava o rebelde pertencente à classe operária», foi um predecessor de James Dean (do qual se dizia que era o «John Garfield da década de 50»).
Scorsese diz, reportando-se designadamente à interpretação de John Garfield em «Forças do Mal», que «ninguém no cinema expressou melhor do que ele o sentimento de culpa».
Denunciado à Comissão por Elia Kazan - que conhecia a sua actividade política por terem sido, ambos, militantes comunistas - John Garfield foi interrogado dezenas e dezenas de vezes e ameaçado, insultado, miseravelmente provocado pelos inquisidores fascistas.
Recusou, sempre e até ao fim, prestar quaisquer declarações.
Na sequência disso viu a sua carreira de actor completamente arruinada.
Viria a morrer em 1952, com 39 anos de idade, em circunstâncias estranhas e obviamente ligadas ao pesadelo a que estava a ser sujeito: a sua morte, de enfarte cardíaco, ocorreu quando se dirigia para mais uma sessão de interrogatórios...

O funeral de John Garfield constituíu uma impressionante manifestação em que milhares e milhares de pessoas - intelectuais, operários, empregados, sindicalistas - expressaram a sua admiração pelo talento, pela coragem, pela dignidade do jovem actor.

POEMA

A CORTIÇA


É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal
há gente que arrefece que arrefece
de sol a sol
de mal a mal.
É preciso dizer-se o que acontece
no meu país de sal.

Passando o Tejo para além da ponte
que não nos liga a nada
só se vê horizonte
horizonte
e tristeza queimada.

É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:
uma fome tão grande que trespassa
o ventre de quem a leva.
É preciso dizer-se o que se passa
no meu país de treva:

Mal finda a noite escurece logo o dia
e uma espessa energia
feita de pus no sangue
de lama na barriga
nasce da terra exangue e inimiga.

É o vapor da sede é o calor do medo
a cama do ganhão
a casca do sobredo.
É o suor com pão
que se come em segredo.

É preciso dizer-se o que nos dão
no meu país de boa lavra
aonde um homem morre como um cão
à míngua de palavra:

Por cada tronco desnudado um lado
do nosso orgulho ferido
e por cada sobreiro despojado
um homem esfomeado e mal parido.

Ah não, filhos da mãe!
Ah não, filhos da terra!
Os enjeitados também vão à guerra.


José Carlos Ary dos Santos

A CAÇA ÀS BRUXAS (2)

«OS DEZ DE HOLLYWOOD»


No dia 24 de Novembro de 1947, dez homens do cinema foram ouvidos pela Comissão de Actividades Anti Americanas, onde, para além do fascista MacCarthy, pontificava um então jovem político chamado Richard Nixon.
Assim era dado início ao brutal e sádico processo de perseguição e repressão política que foi um dos mais sombrios momentos da história dos EUA.

«Os Dez de Hollywood» - como ficaram conhecidos - todos nomes grandes do cinema norte-americano, eram: Herbert Biberman e Edward Dmytryk, realizadores; Adrian Scott, produtor; e os argumentistas Lester Cole, Albert Maltz, John Howard Lawson, Samuel Ornitz, Ring Lardner, Alvah Bessie e Dalton Trumbo.

Os interrogatórios a que foram submetidos assentavam na pergunta-chave: «É, ou foi, membro do Partido Comunista dos Estados Unidos da América?» - após o que, os inquiridos eram intimados a denunciar todas as pessoas que estivessem nessa situação e a fornecer informações circunstanciadas sobre a matéria.

«Os Dez de Hollywood» - todos - recusaram responder ao interrogatório.
Foram condenados: oito deles, a penas de onze meses de prisão; os restantes, a penas de seis meses.

Dois casos:

1 - Edward Dmytryk: era membro do Partido Comunista dos EUA.
Após o julgamento conseguiu refugiar-se na Inglaterra, onde, com fracos recursos financeiros, realizou aquele que foi, tanto quanto sei, o primeiro filme abordando a caça às bruxas: «O Preço da Vida» - por muitos considerado a sua obra-prima.
Em 1950 regressou aos EUA, disposto a cumprir os seis meses de prisão a que fora condenado.
Novamente sujeito aos interrogatórios da Comissão, transformou-se num delator, denunciando vários colegas, entre eles 26 camaradas seus.
Depois disso, viu abrirem-se-lhe de par em par as portas da poderosa indústria cinematográfica norte-americana, passando a dispor de orçamentos fabulosos para os seus filmes.
Todavia, Dmytryk perdera o talento e a criatividade revelados nos filmes anteriores.
Era, talvez, a traição a cobrar o seu verdadeiro preço...

2 - Dalton Trumbo: militante comunista. Recusou-se a prestar declarações aos inquisidores e foi condenado a 11 meses de prisão.
Após o cumprimento da pena, alvo de perseguições e ameaças e com todas as portas profissionais fechadas, mudou-se com a família para o México.
Aí escreveu - assinando com pseudónimo ou pedindo a amigos para que assinassem por ele - cerca de trinta argumentos para filmes.
Entre eles os de Spartacus, The Brave One (que viria a ganhar o Óscar para o Melhor Argumento em 1956 - Óscar que, pela primeira e única vez na história do Prémio, não teve ninguém a reclamá-lo: o Autor havia assinado com pseudónimo e estava longe...) e Férias em Roma (também galardoado com o Óscar e que Trumbo só viria a receber, a título póstumo, em 1993).
Em 1973, já a viver nos EUA, escreveu o seu último argumento: o do filme Papillon.
Dalton Trumbo morreu em 1976, em Los Angeles, com 70 anos de idade.
Nunca traíu.

POEMA

SIGLA


S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
a pança do patrão não lhe cabe na pele
a mulher do gerente não lhe cabe na cama.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o canedal estoira
e o capital derrama

O salário é sagrado
o direito é divino
mais o caso arrumado
do poder que é bovino.

O papel é ao quilo
o cadáver ao metro
mais o isto e aquilo
com que se mata o preto.

O retrato é chapado
a moldura é antiga
para um homem armado
a catana é cantiga.

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o respeito algemado
o sorriso fiel
do senhor cão pastor que tem coleira aos bicos
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
só salvamos a pele se formos cães de ricos:

A palhota de mágoa
a casota de medo
mais o pão e a água
que nos dão em segredo.

A gaveta arrumada
a miséria contida
mais a fome enfeitada
que há num dia de vida.

O cachorro quieto
o prazer solitário
do filho predilecto
do doutro numerário.

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
a folha de serviços a folha de papel
o fabrico o penico o sono estuporado.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o silêncio por escrito o silêncio ladrado:

A mensagem urgente
o envelope fechado
mais o rabo pendente
do animal escorraçado.

O contínuo presente
o contínuo passado
mais a fala deferente
do contínuo coitado:

Permite-me permite
Vossa celebridade
o limite o limite
o limite de idade?

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
Ai o sal deste mar ai o mel deste fel
o azeite o bagaço
o cagaço o aceite
deste lagar Tarzan traumatizado.
Ai a fase do leite
ai a crise do gado
neste curral sinónimo do homem
ANÓNIMO
RESPONSÁVEL
LIMITADO.


José Carlos Ary dos Santos


(Agora é a vez do Zé Carlos.
Por mil razões, das quais emerge, em primeiro lugar, a qualidade superior da sua Poesia.
De toda a sua Poesia, sublinhe-se: a das Cantigas, a Outra e a que fez dele o Poeta da Revolução.
A partir de hoje e até 4 de Dezembro - dia em que o PCP homenageia o Poeta, num espectáculo no Coliseu, com a participação de Carlos do Carmo - o Cravo de Abril oferece aos seus visitantes, todos os dias, um poema do Zé Carlos)

A CAÇA ÀS BRUXAS (1)

A COMISSÃO DE ACTIVIDADES ANTI AMERICANAS

Em Agosto de 1945, três meses após a capitulação da Alemanha nazi, os EUA lançaram duas bombas atómicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasáqui - acto que viria a revelar-se como «a primeira grande operação da guerra-fria».
Tal atitude tinha como objectivo essencial «avisar» a União Soviética de que os EUA dispunham de uma arma que poderia reduzir a URSS a cinzas.
Segundo Churchill, «nós tínhamos agora nas mãos qualquer coisa capaz de restabelecer o equilíbrio com os russos (...) e imaginava-se já em vias de liquidar todos os centros industriais soviéticos e todas as zonas com forte concentração populacional.
Churchill via-se como o único detentor dessas bombas, capaz de as lançar onde quisesse, tornado todo-poderoso e em condições de ditar as suas vontades a Stáline» (Lorde Allanbrooke).
E en Fulton onde, em Maio de 1946, pronunciou um célebre discurso - lido por ele mas escrito com a colaboração de Truman, do secretário de Estado James Byrnes e do financeiro Bernard Baruch - Churchil tinha a consciência clara de estar a fazer o primeiro discurso da guerra-fria.

Entretanto: o prestígio da União Soviética - que tivera papel decisivo na derrota do nazi-fascismo - chegava a todo o mundo e atingia níveis elevadíssimos; o ideal comunista ganhava amplas massas populares; na Europa, os países do Leste, libertados pelo Exército Vermelho, faziam a sua opção socialista; logo a seguir a URSS anunciava ter, também, a bomba atómica; em 1949 triunfava a Revolução Chinesa...
O «comunismo avançava». E o grande capital, em pânico, deitava contas à vida...

É neste contexto que nasce e se desenvolve a célebre operação anticomunista e antidemocrática levada a cabo nos EUA, que ficou conhecida por Caça às Bruxas.
Foi no final dos anos 40 que um senador norte-americano - de seu nome Joseph MacCarthy e de sua condição fascista, sádico e psicopata - iniciou uma gigantesca operação de impiedosa caça aos comunistas, alegando que estes eram «antipatriotas» e preparavam «um complot para derrubar o Governo dos EUA e substituí-lo por um governo comunista que acabaria com a liberdade».
Para isso criou e pôs a funcionar uma tal Comissão de Actividades Anti Americanas que viria a celebrizar-se pela sua intolerância e por uma doentia e perversa sanha persecutória e repressiva.
MacCarthy tinha já alguma «experiência» na matéria: eleito senador em 1946, a sua primeira intervenção enquanto tal foi a de propor que o exército fosse mobilizado para pôr termo a uma greve de mineiros - e que os grevistas fossem julgados em tribunal marcial.
O anticomunismo corria nas veias do novo senador...

Ser comunista era, na visão perturbada de MacCarthy, crime grave, mas também o era ser familiar, amigo, vizinho de comunista... - ou, apenas, dar os bons dias a um comunista...
Assim, os «suspeitos» eram aos milhares e os nomes dos «suspeitos» eram lançados na lama pública. Muitos foram os que «desapareceram» ou se «suicidaram» (com ou sem aspas). após receberem a intimação para irem depor perante a sinistra Comissão, ou depois de prestado o depoiamento.
O ambiente de medo generalizado e de histeria, gerava as situações mais degradantes e anti-humanas.
A denúncia - do pai, da mãe, do filho, do irmão, da mulher, do marido, do amigo, do colega... - era enaltecida e apresentada como exemplo maior de «patriotismo».
Milhares de pessoas foram vítimas, em muitos casos tragicamente, da intolerante, sádica e perversa operação da Caça às Bruxas - que se prolongaria até meados da década de 50.

POEMA

CANÇÃO DA MÃE DE UM SOLDADO
DE PARTIDA PARA A BÓSNIA


É muito jovem, sem tempo ainda
de ser triste. Demora-se nos meus olhos
enquanto leva a maçã à boca.

Nenhuma fala obscura escurece a tarde,
a cabeleira solta é a sua bandeira;
o pés brancos, irmãos
da chuva de verão, anunciam a paz.

Suplico à estrela da manhã
que lhe guie os passos, agora que partiu;
que tenha em conta a sua ignorância,
não só da morte, também da vida.


Eugénio de Andrade
(«Os Lugares do Lume» - 1998)


(Com este poema termina o ciclo Eugénio de Andrade que, de há semanas a esta parte, o Cravo de Abril tem vindo a oferecer aos seus visitantes, e com o qual se pretendeu acompanhar - através de uma, inevitavelmente discutível, selecção de poemas - os caminhos poéticos percorridos, ao longo de cerca de sessenta anos, por um dos maiores nomes de sempre da Poesia portuguesa)

DEMOCRACIA COMEZINHA

«Um problema comezinho»: eis como Mário Soares considera este caso de corrupção, tráfico de influências & etc, conhecido por Face Oculta.
Há que reconhecer a pertinência e a oportunidade desta opinião do pai da política de direita - aliás, a confirmar esta realidade comezinha: Soares está sempre, sempre em cima da jogada...

A verdade é que, neste cadaveroso reyno da política de direita, a degradação e a abjecção são de tal ordem que não há bandalheira, por maior e mais grave que seja, que não seja «um problema comezinho»...

Comezinha é a multiplicação das «faces ocultas» - e a consequente multiplicação das «faces ocultas arquivadas».
Comezinhos são, por esta ordem: 1 - o surgimento do nome do primeiro-ministro ligado a muitos desses «casos»; 2 - o surgimento de uma branqueadora «campanha negra» que resolve tudo; 3 - e, adeus, até ao meu regresso.

O «problema comezinho» é um filho da mãe danado e todos os dias temos temos notícias dele, já que, sendo o filho querido da política de direita, pulula em todas as divisões da casa familiar: veja-se, por exemplo, o «caso» desta senhora que, porque não integrou as listas do PS para a AR, e tendo sido derrotada na sua candidatura à Câmara de Alpiarça, foi agora compensada com o cargo de Governadora Civil de Santarém. Ou este outro «problema comezinho» de um colega da dita senhora que, porque não foi eleito para a Assembleia da República na lista do PS em Lisboa, vai ser agora premiado com o cargo de Governador Civil de Lisboa. Ou, ainda nesta mesma área do «comezinho», este colega dos dois anteriores premiados, que, derrotado na eleição para a Câmara de Espinho, acaba de ganhar a nomeação para Governador Civil de Aveiro.

Isto para não falarmos do «problema comezinho» que é a engorda constante dos lucros dos grandes grupos económicos e financeiros - e, na outra face do «comezinho», o aumento constante do desemprego, da precariedade, dos salários em atraso, da pobreza, da miséria...

Enfim, coisas da democracia comezinha, filha de Mário Soares e de não sei que mãe... ou mães...

POEMA

O SACRIFÍCIO


Não gostaria de falar desse primeiro
encontro com as dificuldades do corpo.
Ou não seriam do corpo? Fora
do corpo haverá alguma coisa?
Foi há tantos anos, que espanta
que dure ainda na memória.
A extrema juventude guarda melhor
o tempo. Idade da flor, assim
lhe chamam. Idade de ser homem,
dizem também. O que é então
ser homem? Ou ser mulher?, se poderá
perguntar. Aqui, era ser homem: idade
de ir às putas. Entrava-se na sala
envergonhado, depois de se bater
à porta. Elas lá estavam: num salto
uma apalpou-o: Que cheiro a cueiros,
exclamou, olhando o cordeiro
do sacrifício. Ao fim, com dez escudos
pagavas o seres homem.
Não era caro, provares a ti mesmo
que pertencias ao rebanho.


Eugénio de Andrade
(«Os Lugares do Lume» - 1998)

ARY SEMPRE!

Intelectual que, desde muito cedo, fez a sua opção política e de classe - e a essa opção permaneceu fiel durante toda a sua vida - o Zé Carlos foi o Poeta das lutas da classe operária e dos restantes trabalhadores e foi o Poeta do seu Partido - o Partido Comunista Português.

Quando, a dada altura, o PCP levou por diante uma campanha de recrutamento de 10 mil novos militantes e, para assinalar o fim dessa campanha e o êxito alcançado, realizou um comício que encheu a deitar por fora o Campo Pequeno, o Partido pediu ao Zé Carlos que fizesse um poema alusivo a esse acontecimento.

Ele escreveu e foi ler, no comício, este poema:



E CADA VEZ SOMOS MAIS


Pela espora da opressão
pela carne maltratada
mantendo no coração
a esperança conquistada.
Por tanta sede de pão
que a água ficou vidrada
nos nossos olhos que estão
virados à madrugada.
Por sermos nós o Partido
Comunista e Português
por isso é que faz sentido
sermos mais de cada vez.

Por estarmos sempre onde está
o povo trabalhador
pela diferença que há
entre o ódio e o amor.
Pela certeza que dá
o ferro que malha a dor
pelo aço da palavra
fúria fogo força flor
por este arado que lavra
um campo muito maior.
Por sermos nós a cantar
e a lutar em português
é que podemos gritar:
Somos mais de cada vez.

Por nós trazermos a boca
colada aos lábios do trigo
e por nunca acharmos pouca
a grande palavra amigo
é que a coragem nos toca
mesmo no auge do perigo
até que a voz fique rouca
e destrua o inimigo.
Por sermos nós a diferença
que torna os homens iguais
é que não há quem nos vença
cada vez seremos mais.

Por sermos nós a entrega
a mão que aperta outra mão
a ternura que nos chega
para parir um irmão.
Por sermos nós quem renega
o horror da solidão
por sermos nós quem se apega
ao suor do nosso chão
por sermos nós quem não cega
e vê mais clara a razão
é que somos o Partido
Comunista e Português
aonde só faz sentido
sermos mais de cada vez.

Quantos somos? Como somos?
novos e velhos: iguais.
Sendo o que nós sempre fomos
seremos cada vez mais!

POEMA

À ENTRADA DA NOITE


Fogem agora, os olhos: fogem
da luz latindo.
Estão doentes, ou velhos, coitados,
defendem-se do que mais amam.
Tenho tanto que lhes agradecer:
as nuvens, as areias, as gaivotas,
a cor pueril dos pêssegos,
o peito espreitando entre o linho
da camisa, a friorenta
claridade de abril, o silêncio
branco sem costura, as pequenas
maçãs verdes de Cézanne, o mar.
Olhos onde a luz tinha morada,
agora inseguros, tropeçando
no próprio ar.


Eugénio de Andrade
(«Os Lugares do Lume» - 1998)

«A PÁTRIA DA DEMOCRACIA»

Em todo o lado onde os EUA se metem há sempre democracia à fartazana - ou não fossem os EUA, como os média dominantes nos dizem todos os dias, «A PÁTRIA DA DEMOCRACIA»...

Não vou falar do Afeganistão, nem do Iraque, nem do Médio Oriente, nem da ex-Jugoslávia (Kosovo incluído), nem da Colômbia...
E muito menos falarei de Portugal, cuja modelar democracia vigente tanto deve ao «amigo americano» do Dr. Mário Soares...

Falo apenas, das Honduras e de Guantánamo.

No primeiro caso, para assinalar que o golpe militar fascista vai de vento em popa, graças a um notável serviço combinado entre os democratas que governam os EUA e os seus gémeos que governam as Honduras.
Como estava previsto, dentro de dias vão realizar-se as «eleições» que «elegerão» o futuro «presidente» e... pronto: se há «eleições», há «democracia», não é verdade?...

É claro que a quase totalidade dos países do mundo não reconhece essas «eleições», antes as considera mais um golpe - mas de que vale a opinião do mundo quando não coincide com a opinião do dono do mundo?...
Acresce que, para dar à coisa, o necessário toque insolente e provocatório que é alimento básico da «democracia made in USA», o Presidente do Congresso hondurenho anunciou que o dito Congresso vai finalmente reunir para decidir se sim ou não restitui o poder a Manuel Zelaya - decisão que, como estamos lembrados, fazia parte do célebre «acordo» perpetrado pelos governos de Obama e do fascista Micheletti - «acordo histórico», assim lhe chamou a buliçosa Hillary Clinton.
Ora, a dita reunião do dito Congresso foi marcada para o dia... 2 de Dezembro - isto é: para três dias depois das «eleições presidenciais» convocadas pelos golpistas e apoiadas pelo Governo de Obama.

Ah!, já me esquecia: não obstante o seu apoio aos golpistas, o Governo de Obama considera que Manuel Zelaya é o «presidente legítimo das Honduras»... - cá está o tal toque insolente e provocatório que é pão de cada dia da «democracia made in USA».


Quanto à prisão de Guantánamo, esse moderníssimo centro de tortura - tortura democrática, obviamente - cujo objectivo primeiro é levar os presos a confessar tudo o que os torturadores queiram: como estamos lembrados, a primeira decisão anunciada (e assinada) por Obama, após a tomada de posse como Presidente dos EUA, foi a do encerramento da prisão de Guantánamo, até Janeiro de 2010.
Foi a primeira grande «promessa» de Obama.

E é, também, a primeira a não ser cumprida: ontem, Obama anunciou o adiamento do fecho da prisão de Guantánamo - e recusou comprometer-se com uma nova data.
É caso para dizer que à primeira cavadela, minhoca.

Mas não há problema: em Guantánamo como nas Honduras, como no resto do mundo, a «democracia» está a salvo: a «pátria» dela zela por ela.
E por nós...

POEMA

DAI-ME UM NOME


Dai-me um nome, um só nome
para tudo quanto voa:
cardo pedra romã.

Um só nome para o desejo
ser na manhã corola
de cal, cotovia,

chama subindo
baixando até ser incêndio
de amor rente ao chão.

Um só nome para que tudo,
rosa excremento mar,
possa entrar numa canção.


Eugénio de Andrade
(«Os Lugares do Lume» - 1998)

ARY SEMPRE!

O funeral do Zé Carlos - impressionante cortejo de dezenas de milhares de pessoas, caminhando sob a chuva - foi uma inesquecível manifestação de massas, com o carácter e o conteúdo de tantas outras em que o Poeta participara, pessoalmente ou através dos seus poemas de luta.

Gente vinda de todo o País:
homens e mulheres; rapazes e raparigas; intelectuais e estudantes; camponeses e empregados; construtores da Reforma Agrária e das Nacionalizações.
Operários: da Lisnave e da Siderurgia, da Mague e das OGMA, da Sorefame e da Cometna, da Covina e da Fábrica da Loiça, dos Cabos Ávila e da Cel-Cat..., muitos vindo directamente do trabalho, com os seus fatos de ganga e os punhos erguidos, todos sabendo que, como o Zé Carlos cantou,
«Ser operário é apenas saber dar
mais um pouco de nós ao que nós somos»



A FÁBRICA


Da alavanca ao tear da roda ao torno
da linha de montagem ao cadinho
do aço incandescente a entrar no forno
à agulha a trabalhar devagarinho.

Da prensa que se fez para esmagar
à tupia no corpo da madeira
do formão que nasceu a golpear
à força bruta de uma britadeira.

Do ferro e do cimento até ao molde
que é quase um esgar de plástico sereno
do maçarico humano que nos solde
às luz da luta e não do acetileno

nasce este canto imenso e universal
sincopado enérgico fabril
sereia que soou em Portugal
à hora de pegarmos por Abril.

Transformar a matéria é transformar
a própria sociedade que nós fomos
ser operário é apenas saber dar
mais um pouco de nós ao que nós somos.

Um braço é muito mas por si não chega
por trás da nossa mão há uma razão
que faz de cada gesto sempre a entrega
de um pouco mais de força. De mais pão.

Estamos todos num único universo
e não há uns abaixo outros acima
pois se um poema é uma obra em verso
um parafuso é uma obra-prima.

Operários das palavras ou do aço
da terra do minério do cimento
em cada um de nós há um pedaço
da força que só tem o sofrimento.

Vamos cavá-la com a pá das mãos
provar que em cada um nós somos mil
é tempo de alegria meus irmãos
é tempo de pegarmos por Abril.

POEMA

OS PEQUENOS PRAZERES


O copo de água fresca
sobre a mesa,
a réstea de luz incendiando
ainda a mão,

as palavras que dão sentido à arte
dos dias a caminho do fim,
"a beleza
é o esplendor da verdade",

o sol
que dos flancos do muro sobe
ao olhar do gato,
o silêncio de ramo em ramo,

a chuva em surdina
na folhagem do jardim
- a chuva e a cumplicidade
de Gieseking e Debussy.


Eugénio de Andrade
(«Os Lugares do Lume» - 1998)

QUESTÃO DE PRINCÍPIO

É sabido que, para os média dominantes - propriedade do grande capital - o silenciamento, a deturpação, a falsificação, a manipulação das posições do PCP, é uma questão de princípio.
Por razões que nem vale a pena referir, tão óbvias são - e que são as mesmas que levam esses mesmos média dominantes a desdobrarem-se na super-valorização, no elogio, no panegírico, na louvação das posições do BE...

Há cerca de um mês, chamei a atenção para um exemplo concreto:
na primeira sessão da actual Legislatura - em 15 de Outubro - o PCP entregou na mesa nove diplomas, em torno de matérias do interesse daquela imensa maioria de portugueses que todos os dias é flagelada pela política de direita imposta pelo governo PS/Sócrates, enquanto conselho de administração dos interesses do grande capital.

Os média deram pouca (ou nenhuma) relevância a essa iniciativa do Grupo Parlamentar do PCP.
Em contrapartida, trouxeram para as suas primeiras páginas... um tema «fracturante»: as propostas que o BE iria apresentar sobre «casamentos "gay" e uniões de facto»...


Mais recentemente, no dia 2 de Novembro, o Grupo Parlamentar do PCP anunciou a entrega de um Projecto de Lei sobre a corrupção, visando designadamente a criminalização do enriquecimento ilícito.
A proposta do PCP teve pouca (ou nenhuma) repercussão nos média dominantes - talvez por não ser «fracturante», sei lá...

Mas eis que, hoje, dia 16, o Diário de Notícias dá grande destaque (e meia página) à notícia de que o BE anunciou, ontem, que vai apresentar na AR «quatro propostas anticorrupção», visando designadamente a «criação do crime de enriquecimento ilícito»...

Sobre a iniciativa do PCP, anunciada em 2 de Novembro, nem uma palavra.
Percebe-se: é a tal questão de princípio.

POEMA

HÁ DIAS


Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo nos cai
em cima. Depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam.
Não lhes sei o nome. Uma
ou outra parece-se comigo.
Quero eu dizer: com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença da graça,
ou da alegria.
Um sorriso abre-se então
num verão antigo.
E dura, dura ainda.


Eugénio de Andrade
(«Os Lugares do Lume» - 1998)

ARY SEMPRE!

A Revolução de Abril estava à beirinha de comemorar o seu 20º aniversário, quando o seu Poeta morreu: no dia 19 de Janeiro de 1984. Há 25 anos.
Nunca um Poeta teve tanta gente a acompanhá-lo no dia da sua morte.

«O corpo do Poeta ficou em câmara ardente na Sociedade Portuguesa de Autores e, durante toda a noite, uma fila ininterrupta de pessoas desfilou junto à urna, sobre a qual, de acordo com a sua vontade, fora estendida a bandeira do Partido - a bandeira comunista, que ele cantara em versos carregados de futuro, por ocasião do ataque terrorista ao Centro de Trabalho do PCP, em Braga».



A BANDEIRA COMUNISTA


Foi como se não bastasse
tudo quanto nos fizeram
como se não lhes chegasse
todo o sangue que beberam
como se o ódio fartasse
apenas os que sofreram
como se a luta de classe
não fosse dos que a moveram.
Foi como se as mãos partidas
ou as unhas arrancadas
fossem outras tantas vidas
outra vez incendiadas.

À voz de anticomunista
o patrão surgiu de novo
e com a miséria à vista
tentou dividir o povo.
E falou à multidão
tal como estava previsto
usando sem ter razão
a falsa ideia de Cristo.

Pois quando o povo é cristão
também luta a nosso lado
nós repartimos o pão
não temos o pão guardado.
Por isso quando os burgueses
nos quiserem destruir
encontram os portugueses
que souberam resistir.

E a cada novo assalto
cada escalada fascista
subirá sempre mais alto
a bandeira comunista.




Dia 4 de Dezembro, às 21H30, no Coliseu, em Lisboa

Homenagem do PCP ao Poeta da Revolução,
no 25º ano sobre o seu desaparecimento.

Espectáculo com Carlos do Carmo.


ARY SEMPRE!

POEMA

TEATRO DOS DIAS


Ninguém cheira melhor
nestes dias
do que a terra molhada: é outono.
Talvez por isso a luz,
como quem gosta de falar
da sua vida, se demora à porta,
ou então passa as tardes à janela
confundindo o crepúsculo
com as ruínas
da cal mordidas pelas silvas.
Quando se vai embora o pano desce
rapidamente.


Eugénio de Andrade
(«Ofício de Paciência» - 1004)

É «A CRISE», NÃO É VERDADE?...

Um estudo efectuado por «Nuno Alves, investigador do Banco de Portugal», revela que
«em 21% das famílias que enfrentam situações de desemprego, há duas pessoas à procura de trabalho», na maioria dos casos o marido e a mulher.
Estes números são os mais elevados desde há, pelo menos, 20 anos.

Segundo o investigador do BP, «quando o desemprego afecta os dois membros do casal, a incidência da pobreza sobe para 48%», contra os 18,5 % registados na população em geral».
Esta situação é agravada pelo facto de mais de metade dos desempregados não receber subsídio de desemprego (ao contrário do que dizem dados do Ministério do Trabalho, segundo os quais cerca de 68% dos desempregados recebem subsídio).

Infelizmente, o investigador do BP não teve tempo para «estudar pormenorizadamente as razões que levaram a este aumento»... Por dificuldades de agenda, certamente...
E, em vez disso, ofereceu-nos duas conclusões... sensacionais:
a de que «o desemprego também contribui para as desigualdades» - quem diria! -
e a de que «as famílias pobres são as mais penalizadas com o desemprego»- quem diria!

É claro que, como todos os dias nos é dito pelos média do grande capital, «as dificuldades tocam a todos»...
É «a crise», não é verdade?...

Veja-se a situação dramática de Américo Amorim, o dono da Corticeira Amorim: por causa da «crise», viu-se obrigado a despedir, em Fevereiro passado, cerca de 200 trabalhadores - recorde-se que com a conivência do então ministro do Trabalho, Vieira da Silva.
E ainda há dias o próprio Amorim nos veio dizer que «o ano tem sido difícil para a Corticeira, já que a empresa tem desenvolvido a sua actividade num quadro de recessão económica grave e generalizada».
É «a crise» não é verdade?...

Valha-nos, no entanto, a excelência da governação Sócrates/PS na aplicação da política de direita - e valha-nos igualmente a excelência da gestão dos grandes gestores...
Graças a essa governação e a essa gestão, nem tudo vai mal neste nosso reino da Dinamarca...
Ou, melhor dizendo: tudo vai bem...
Que o diga o supra-citado Américo Amorim que no terceiro trimestre deste ano viu a sua Corticeira arrecadar um lucro líquido de 5,7 milhões de euros - o que corresponde a um aumento de 60,7% em relação ao lucro obtido em igual período do ano passado.

É «a crise», não é verdade?...

Homenagem ao poeta da Revolução «Ary Sempre!»

Passados 25 anos sobre o seu desaparecimento, o PCP vai promover, no dia 4 de Dezembro, pelas 21h30, no Coliseu, em Lisboa, o espectáculo «Ary Sempre!», de homenagem a José Carlos Ary dos Santos (1937-1984), poeta português e militante comunista.

Este grande momento musical terá um preço único de 20 euros, sem lugares marcados, e conta com a participação de
Carlos do Carmo, que interpretará poemas de Ary dos Santos, do pianista Bernardo Sassetti e dos músicos Ricardo Rocha (guitarra portuguesa), Carlos Manuel Proença (viola) e Fernando Araújo (baixo).

POEMA

OS TRABALHOS DA MÃO


Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura: semear, colher,
coser, esfregar. Mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatigá-la.
O fim não pode tardar: oxalá
tenha em conta a sua nobreza.


Eugénio de Andrade
('Ofício de Paciência» - 1994)

A ORDEM NATURAL DO CAPITALISMO

Segundo um relatório da UNICEF ontem divulgado, «no mundo, mais de 200 milhões de crianças de menos de cinco anos de idade passam fome».

Este número é, por si só, elucidativo do estado actual do mundo - e, portanto, do carácter do sistema político, económico, social e cultural que, porque é dominante, é o responsável por este estado do mundo: o capitalismo.

No entanto, para além do horror deste número, há outros horrores.
O relatório diz respeito a «crianças com menos de cinco anos de idade», mas...
e as crianças irmãs mais velhas dessas crianças?: é mais do que previsível que, em casas onde os mais pequeninos passam fome, o mesmo aconteça aos maiorzinhos...
E quantos milhões são esses maiorzinhos?

E os pais dessas crianças com menos e com mais de cinco anos de idade?: certamente, ninguém - nem o mais assanhado dos propagandistas do capitalismo - os imagina a banquetear-se diante dos filhos a morrerem de fome...
E quantos milhões são esses pais?

Com esta simples reflexão, pretendo chamar a atenção para o facto de estes números revelados pela UNICEF - sem dúvida elucidativos da brutal desumanidade que caracteriza o sistema capitalista - ficarem muito aquém da realidade

Na verdade, em cada casa onde há uma criança que passa fome, há uma família, um núcleo de seres humanos, cercados por um espesso muro de ausência de direitos humanos.
De ausência de justiça.
De ausência de liberdade.

E, ao contrário do que diz a ideologia capitalista, esta não é uma «ordem natural das coisas»: é, isso sim, a ordem natural do capitalismo.

O capitalismo para o qual a única alternativa é o socialismo.

POEMA

LUGAR DO SOL


Há um lugar na mesa onde a luz
abdicou do seu ofício.
Já foi do sol
e do trigo esse lugar - agora
por mais que escutes, não voltarás
a ouvir a voz de quem,
há muitos anos, era a delicadeza
da terra a falar: «Não sujes
a toalha»; «Não comes a maçã?»
Também já não há quem se debruce
na janela para sentir
o corpo atravessado pela manhã.
Talvez só um ou outro verso
consiga juntar no seu ritmo
luz, voz, maçã.


Eugénio de Andrade
(«Ofício de Paciência» - 1994)

A PROPÓSITO DE UM CASTIGO INJUSTO

Há 70 anos, por esta altura, viviam-se momentos dramáticos: Hitler, apoiado pelo grande capital alemão - ou, dizendo com mais rigor: apoiado pelo grande capital internacional - punha em marcha a sua poderosa máquina de guerra, numa ofensiva que parecia imparável e que tinha como objectivo o domínio absoluto do mundo e a instauração de um regime nazi-fascista, com a liquidação da democracia e da liberdade.
A ofensiva nazi tinha como alvo primeiro e principal a União Soviética, onde duas décadas atrás se iniciara, pela primeira vez na História, a construção de uma sociedade nova, sem exploradores nem explorados, livre, socialista.

Em Setembro de 1939, Bento de Jesus Caraça, escrevia:
«Esta Europa entrou na fase central da carreira louca da morte; começou a descida aos infernos. E a Europa nova há-de surgir (daqui a quanto tempo?) aquecida pelo sol do oriente, aquele longínquo oriente onde se estão jogando os verdadeiros destinos do mundo».

Seis anos depois, o mundo respirava de alívio: o projecto nazi-fascista fora derrotado e para essa derrota fora fundamental e decisiva a acção do «longínquo oriente» a que aludia Bento de Jesus Caraça, ou seja: a acção da União Soviética, do seu heróico povo, do seu glorioso Exército Vermelho.
Abriam-se perspectivas promissoras e a «Europa nova» parecia prestes a surgir...

Mas outro projecto de domínio do mundo estava em marcha: antes mesmo da capitulação da Alemanha nazi, os EUA deram sinais inequívocos dos seus objectivos e do vale-tudo a que iriam recorrer para os alcançar - igualmente ao serviço do grande capital internacional que apoiara Hitler; igualmente tendo a União Soviética socialista como alvo primeiro e principal...


Com a derrota do socialismo e o desaparecimento da União Soviética e da comunidade socialista do Leste da Europa, o caminho ficou extremamente facilitado para o imperialismo norte-americano, o qual, no mundo unipolar que é o de hoje, tem vindo a assumir crescentemente - em palavras, em arrogância e, sobretudo, em actos - o papel que se auto-atribuiu de dono do mundo, deixando marcas dilacerantes das suas garras espalhadas por todo o planeta - mas também, e isso é o mais importante, deparando com uma crescente resistência dos povos, uma resistência que, hoje como há 70 anos, conta com os comunistas na sua primeira fila.

Quer isto dizer que a situação dramática que hoje se vive no mundo, se assemelha, em aspectos essenciais, à que se vivia há 70 anos atrás.
Em ambas as situações a questão central é a do objectivo de domínio absoluto do mundo pelo grande capital:
antes, invadindo e ocupando países à custa de milhões de mortos;
hoje, invadindo e ocupando países à custa de milhões de mortos.


Tudo isto me veio à ideia, ao ler, hoje, uma notícia sobre três soldados checos que, integrando as forças de ocupação do Afeganistão, foram castigados pelo facto de terem enfeitado os seus capacetes com símbolos das divisões das SS nazis.
A meu ver, trata-se de um castigo profundamente injusto, já que, na realidade, usando os símbolos nazis, os três soldados checos mostraram ter percebido o carácter exacto da guerra para onde os enviaram...

POEMA

BALANÇA



No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida.



Eugénio de Andrade

(«Ofício de Paciência» - 1994)

IGUALDADE DE OPORTUNIDADES

Há um ano, o sistema financeiro norte-americano entrou em colapso: sucederam-as as falências de bancos e o pânico espalhou-se no capital financeiro do país e do mundo.
O Governo - na sua função de conselho de administração dos interesses do grande capital - safou esses bancos da falência, utilizando para isso dinheiros públicos: milhares e milhares de milhões de dólares, portanto à custa de enormes sacrifícios da imensa maioria dos norte-americanos.

Um ano depois, esses bancos salvos pelo Governo apresentam lucros fabulosos - e preparam-se para distribuir prémios fabulosos aos seus quadros superiores.
É assim que os três maiores desses bancos - insisto: safos há um ano com dinheiros públicos - vão distribuir em prémios a maior verba alguma vez utilizada com este objectivo: nada mais nada menos do que cerca de 30 mil milhões de dólares.

Mais ano menos ano, estes mesmos bancos voltarão a falir, o Governo voltará a safá-los recorrendo aos dinheiros públicos, à custa da maioria dos norte-americanos - e assim acontecerá enquanto o capitalismo dominar.

Tudo isto a mostrar-nos por que é que os EUA são conhecidos como o país da igualdade de oportunidades...

POEMA

BREAKFAST EM MASPALOMAS


Das coisas que menos esperava
num hotel de cinco estrelas
era encontrar um gato
no meu prato de torradas.
Como num dos poemas últimos de Montale,
enquanto o chá arrefecia,
foi-se afastando pelo muro do terraço
em leves e femininos passos de dança,
como o faria Nureiev se tivesse
tomado comigo o pequeno almoço.


Eugénio de Andrade
(«Rente ao Dizer» - 1992)

VINTE ANOS DEPOIS, COMO É?

Há mais de uma semana que a «queda do muro» tem sido notícia em tudo quanto se apelida de órgão de comunicação social.
Com uma criatividade notável, os média dominantes nacionais repetem-se e repetem-se na difusão da leitura-chapa-um sobre os acontecimentos ocorridos há vinte anos - com a preocupação, comum a todos, de diabolizar o socialismo e santificar o capitalismo.
Hoje, dia 9, como era previsível, os jornais repetem tudo o que disseram na última semana - e fazem-no, como era previsível, em sensacionais primeiras páginas e dezenas de sensacionais páginas interiores.

A noite de 9 de Novembro de 1989 é-nos contada nos seus mais ínfimos pormenores: no quadro da tal leitura-chapa-um, ficamos a saber que a «queda do muro» foi a «libertação do povo da RDA»; foi a «democracia, enfim!»; foi a «liberdade, enfim!»; foi, enfim, a felicidade e a bem-aventurança...
(curiosamente, nenhuma notícia nos fala de uma outra faceta dessa «noite libertadora»: enquanto a enorme multidão festejava a suposta libertação, uma pequeníssima multidão - composta pelos homens de mão dos grandes senhores do capital da então República Federal Alemã, apropriava-se das mais importantes fábricas e empresas da então RDA, numa daquelas operações de rapina em que o capitalismo é mestre)

Também como era previsível, as notícias fogem a estabelecer comparações entre o antes e o depois da queda do muro.
Percebe-se: se o fizessem dificilmente poderiam deixar de reconhecer que o que marca as mudanças registadas nestes vinte anos é um profundo retrocesso económico e social que instituiu o desemprego como inevitabilidade, que decretou como velharias totalmente destituídas de modernidade, o direito à saúde, à educação, á infância, à velhice - e que, assim, atirou para a miséria amplas camadas da população.

Recorde-se que, um estudo a que o Cravo de Abril fez referência há uns meses atrás, dava conta que, vinte anos passados sobre a queda do muro, «57 por cento da população da ex-RDA continua a defender o socialismo» e considera que o seu antigo país tinha «mais aspectos positivos do que negativos».
A opinião destes 57 por cento, vem confirmar as declarações proferidas pelo antigo chefe de Estado da RDA, Erich Honecker, no decorrer do julgamento a que foi submetido pelas autoridades alemãs, no tribunal de Berlim, em 1992 - declarações que (retiradas do Avante!; aqui se recordam:

«Cada vez mais alemães de Leste constatarão que tinham as condições de vida menos deformadas na RDA do que os alemães ocidentais com a economia "social" de mercado;
que as crianças da RDA, nas creches, jardins-de-infância e escolas, cesciam mais felizes, menos preocupadas, mais bem formadas e mais livres do que as crianças da RFA (...);
«Os doentes constatarão que, apesar dos seus atrasos técnicos, o sistema de saúde da RDA os considerava como pacientes e não como objectos comerciais (...);
«Os artistas compreenderão que a censura da RDA, real ou imaginária, não era tão hostil aos artistas como a censura do mercado (...);
«Reconhecerão que na vida quotidiana, em particular no local de trabalho, tinham na RDA uma liberdade inigualável».

«E a liberdade»?: gritam, em coro síncrono, os média do grande capital, repetidos e repetidos pelo extenso cortejo de especialistas em matéria de «liberdade» forma(ta)dos por esses mesmos média.
Um dia destes abordarei aqui esse tema.

Até lá, deixo-vos esta breve observação de Lénine sobre o assunto:
«Os capitalistas sempre chamaram "liberdade" à liberdade de obter lucros para os ricos, à liberdade dos operários de morrerem de fome.»