Transição Defesa-Ataque no País do Futebol



Há cerca de um ano atrás o FC Porto recebeu em casa, derrotando por 3-1, o Bayern de Munique. Evocando a vitória sobre essa mesma equipa na final da Liga dos Campeões de 1987, a euforia percorreu a massa associativa azul e branca, que viu nela uma prometedora evidência de que a equipa poderia singrar na competição. Foi breve, a expectativa: apenas 6 dias depois, em Munique, a equipa portista sofria seis golos, ficando-lhe o consolo do golo de Jackson Martínez. Nas duas mãos, a equipa alemã marcou 7 golos, e a portista apenas 4. A promessa esfumava-se.

Recordo-me, nessa altura, de ter feito um comentário sobre a atitude da equipa do FC Porto em Munique, comparando-o a uma atitude típica (e invariavelmente derrotada) de certas organizações de esquerda: a equipa abordou o jogo com o objectivo de defender o que tinha conquistado, sem confiança na possibilidade de arrancar um resultado tanto mais vantajoso do que aquele que já trazia. Naturalmente, o adversário não era fraco. A burguesia, na luta de classes, muito poucas vezes aparece como uma classe debilitada e trémula, para quem um pequeno encontrão significará a derrota absoluta. Mas uma coisa seguramente não a vai derrotar, quando ela toma a ofensiva e desfere golpe atrás de golpe às conquistas dos trabalhadores: a atitude meramente defensiva, o soçobrar diante da invencibilidade do inimigo, o acatamento do cerco, o reconhecimento da própria insuficiência. Como equipa que se limita a defender o resultado arrisca perder o jogo, uma classe que apenas gere as conquistas feitas, denunciando em cada gesto o seu medo, nada fazendo para recuperar a ofensiva, convida com a sua atitude a audácia e o crescendo da virulência com que a burguesia lhe vai arrancar cada avanço que conseguiu. Em lugar nenhum esta atitude levou a vitórias: nem na Grécia do Syriza, nem na Venezuela de Chávez e Maduro, nem nas Honduras de Manuel Zelaya. No próprio Brasil, na época de João Goulart, já tinha ficado claro que as classes dominadas e a sua direcção, quando hesitam, não recebem vãs piedades da burguesia - ela aproveita sempre, e fulgurantemente, essa hesitação para empurrar o inimigo para trás.

Parece-me por isso clara a posição que as forças revolucionárias brasileiras devem assumir, interpelando os amplos movimentos de massas operárias, camponesas, ao movimento de moradores de favela, ao movimento estudantil, e a todas as organizações onde, objectivamente, o PT assume uma preponderância inequívoca: vocês confiam nesta direcção política sequer - já nem falamos da edificação do socialismo - para aplicar o Programa Democrático e Popular, grande projecto político do petismo? Não vos parece a todos os títulos evidente que esta direcção, na busca permanente da conciliação e do compromisso com a burguesia brasileira e com o imperialismo, vos expõe consecutivamente às investidas do golpismo? Acham sinceramente que não é precisamente porque o PT exibe, descuidadamente, a barriga mole do movimento popular, que esse mesmo movimento corre o risco de ser partido pela reacção ascendente? Olhem para os bolivarianismos, cujo ciclo parece estar em refluxo - não extraem dessas derrotas nalguns casos, dessas tensões noutros, desse processo mais ou menos evidente de recuo em todos, que o que ali faltou foi mão firme na desarticulação das organizações da burguesia, proibindo os seus partidos sim, expropriando os seus jornais sim, arrancando-lhe os seus capitais decerto, impondo-lhe restrições à reunião, à associação, à circulação, aos contactos internacionais?

O democratismo, isto é, o medo de para fazer triunfar a revolução ter de violar princípios da democracia burguesa, foi a pecha que impediu a vitória das várias experiências progressistas e anti-imperialistas da América Latina no séc. XXI. No Brasil, onde a experiência do PT não teve um décimo da radicalidade da experiência venezuelana, mas onde nem assim a reacção hesita em usar os jornais, os tribunais, todas as posições do aparelho de Estado (que, recordemos, é o Estado burguês, e não um Estado neutro, abstracto, aclassista), é suicidário não recolher essa experiência, não aprender com ela quais são os passos a dar a seguir, não ter a firmeza nem a consciência histórica que leve a hesitar na hora de brandir um golpe sobre o movimento reaccionário em ascensão. O movimento popular no Brasil deve ser abordado pelas forças revolucionárias com esta mensagem bem clara:é chegado o tempo do poder popular, o tempo de derrubar a burguesia definitivamente, de edificar o socialismo. Voltando ao futebol, se não houver uma transição defesa-ataque agora, os 3 golos marcados na primeira volta vão ser submersos por uns 6, ou mais, assestados na segunda mão. Que a classe tenha consciência disso no Brasil, e os comunistas saibam apontar-lhe esse caminho.

Relembrando textos mais actuais do que nunca: do nosso camarada Sérgio Ribeiro (Jornal Avante!, nº 1402, Outubro de 2000)

Eu, conservador, me inconformo
Há pouco mais de uma década – não foi há séculos... –, numa das curvas em que a História é pródiga e em que há que evitar o pânico da derrapagem, senti necessidade de escrever, em “o diário”, que “eu, ortodoxo, me confesso”. “O diário” era então dirigido por quem é, hoje, figura grada da SIC, tinha redactores que são, hoje, gradas figuras de diários económicos e de negócios e, então, os arautos da necessária, indispensável, inevitável renovação do Partido (comunista e português) eram militantes e dirigentes do partido que são, hoje, graúdos ministros e secretários de Estado, deputados com assento em bancadas centrais e tribunas VIP, autarcas de elite, “boys” com “jobs” excelentemente remunerados. Alguns com passagem, algo envergonhada, por plataformas de que fizeram trampolim. Por mim, continuo a ser o que era quando tal confessei. Era, e sou, militante de base do PCP. Logo, serei conservador.
(...) Com essa renovação que, dentro, tentaram e, de fora, tanto promoveram, ter-nos-ia acontecido o que se verificou pelas paragens onde partidos mudaram símbolos, esconderam nomes, abandonaram o marxismo e, logo depois, o marxismo, perderam a perspectiva de classe e, por isso, hoje os trabalhadores, por essas paragens, estão orfãos de organização partidária, procuram recuperá-la ou reconstituí-la, reencontram Marx e Lenine.
Passou só uma década, não duas nem séculos. O PCP está aí. Surpreendentemente, para alguns, vivo, incomodando como é fácil de comprovar. De classe, marxista-leninista, em renovação porque capaz de atrair jovens em busca de valores, de princípios, de causas por que valha a pena lutar.
Agora, passada uma década em que as pressões externas e, também!, internas não desarmaram, com o Congresso à porta, aí estão de novo a reclamar – de fora para dentro, dentro e de dentro através de fora – uma necessária, indispensável, inevitável renovação do PCP. Como sempre, anatematizando os que resistem a essa renovação por encomenda. Ontem ortodoxos, hoje conservadores (também ortodoxos e o que inovador vier às imaginativas cabeças).
Renovação necessária para quê?, indispensável para quem?, inevitável porquê? Eu, que conservador me confesso, também alinho com os inconformados e os insubmissos, também defendo uma necessária, indispensável, inevitável renovação. Mas necessária para melhor interpretarmos a História, apoiados no marxismo-leninismo como base ideológica e metodologia; indispensável para que a classe, os trabalhadores, o povo, não percam um colectivo que os defende, que é o seu lugar e arma de luta; inevitável porque só renovando-se pode o Partido continuar a ser o que sempre foi e a lutar pelo que sempre lutou.
A mudança que de fora nos aconselham, e empenhadamente promovem, não seria em favor dos trabalhadores, nem para melhorar a democracia, para a tornar menos burguesa. Como Partido, somos anti-capitalistas e eles são capitalistas, somos democratas a tempo inteiro – mesmo quando a luta pela democracia obriga a sacrifícios – e eles são democratas em tempo e espaços condicionados e nem pensar em democracia da porta das empresas para dentro.
A mudança que, de fora promovem, e/ou a que dão eco, não é para combater a exploração e as suas raízes, não é para ajudar a classe operária, que os tais conservadores em que me incluo insistem em afirmar que existe (e eles sabem que temos razão!). Classe operária que a todo o momento muda, porque a todo o momento muda a vida, e que, por isso, exige que sejamos o Partido que se renova para continuar a ser o que é necessário e indispensável que continue a ser.
Sérgio Ribeiro
Vila Nova de Ourém

«Avante!» Nº 1402 - 12.Outubro.2000

CENTRISMO OU LINHA REVOLUCIONÁRIA




Não é correcto considerar que a linha revolucionária é um ponto intermédio entre o esquerdismo e o reformismo.
O esquerdismo caracteriza-se pela inconsequência e a desorganização no uso de formas violentas de luta e reivindicações desajustadas ao grau de consciência das massas que, deliberada ou inconscientemente, acaba por dar armas ao capital. O reformismo arma também o capital, mas na medida em que prende as massas nas formas legais de luta, jogo esse que os trabalhadores nunca poderão ganhar: a democracia burguesa*. Ora, se é princípio leninista explorar todas as formas de luta, não se rejeitam as formas legais, nem se abandonam as ilegais.

O que leva um comunista a defender tal ou tal forma de luta? Para isto, é importante fazer a análise concreta da situação concreta, entendendo, em cada momento, se estão reunidas as condições para determinada acção. E – ponto fundamental – quando determinada circunstância histórica exige determinadas formas de luta, compete aos comunistas organizar as massas de forma a serem capazes de as desenvolver. A rejeição deste trabalho organizativo para as acções necessárias  e não para as acções possíveis é uma capitulação.

Um comunista não pode virar as costas ao seu papel histórico de organizar as massas para todas as formas de luta pois se o fizer, deixa de ser comunista. O esquerdismo e o reformismo são duas faces da mesma moeda: a sobrevalorização de determinada frente de luta, seja a institucional, seja a ilegal. A solução é escolher a forma adequada em cada conjuntura – não é utilizar uma táctica de meio termo entre ambas. Isso, em termos marxistas, chama-se centrismo.

Na actual conjuntura, a decisão sobre o caminho a seguir é uma tarefa de grande responsabilidade. A dimensão da investida do capital exige um Partido que esteja à altura não apenas daquilo que já foi, do que é, mas do que virá a ser. Ou seja, se por um lado os comunistas têm de defender e reforçar as conquistas de Abril, por outro lado têm que assumir o seu papel de vanguarda dirigindo as massas na ruptura com o capitalismo, tendo como objectivo a revolução socialista. Só assim estarão à altura dos que tombaram nas prisões fascistas, que foram torturados e forçados ao exílio.

A opção que os comunistas tomam nunca poderá ser o centrismo, o reformismo ou o esquerdismo: é a linha revolucionária na preparação das massas para a tomada do poder, a destruição do estado burguês e a construção de um novo estado, o do proletariado utilizando todas formas de luta que as diferentes conjunturas exigem.


 *A democracia burguesa é na verdade a ditadura do grande capital onde uma classe exerce a sua dominação sobre a outra. “No mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passo com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a «democracia» dos capitalistas proclama, e os milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariados. É precisamente esta contradição que abre os olhos às massas para a podridão, a falsidade e a hipocrisia do capitalismo” (Lenine 1918). É precisamente esta contradição que os comunistas denunciam a todo o momento perante as massas a fim de as preparar para a revolução.



O Silêncio Sobre o Syriza e os Interessados Nele


Recebida apoteoticamente por todos os órgãos da imprensa, todos os comentadores, todos os partidos, e todas as forças sociais empenhadas numa resposta refomista ao capitalismo (ou, mais modestamente, à sua mais recente aplicação sob a forma de «austeridade»), a vitória eleitoral do Syriza foi aplaudida por todos e mais algum. Agora é que a Europa ia ver a força da mobilização cidadã. Agora é que a desobediência à Europa da austeridade ia ser trazida para cima da mesa. Agora é que se iam lançar na luta as forças que procuram uma nova Europa, devolvida ao seu projecto de fraternidade entre os povos, perante uma direita incapaz de suster a torrente da vontade do eleitorado. Havia papeis, dobrados em quatro e metidos em caixas, que iam meter em sentido Merkel e Hollande, Schäuble e os banqueiros de Frankfurt. Quando esses mesmos banqueiros chegaram fogo aos papeis pintados, e riram até às lágrimas da furiosa indignação com que, de testa franzida, os reformistas lhes diziam «mas é a vontade popular! mas é o Estado de direito! mas foram eleições livres! respeito e honradez e vergonha e sentimentos morais!!!», o silêncio apoderou-se dos syrizettes de toda a ordem. Até hoje.

 Tsipras governa hoje como qualquer governante de um partido da direita grega governaria: aplica um programa da troika, bate em manifestantes, faz acordos de cooperação militar com os sionistas, acalma os mercados o mais que pode. Faz tudo isso, por sinal, sem que os membros do Partido da Esquerda Europeia achem especialmente insólito que o Syriza permaneça nessa organização, lhe peçam contas, ou se distanciem em palavras ou actos. É no mínimo uma demonstração de rápida aprendizagem para os que eram tão lestos em condenar silêncios alheios sobre o que se passava na URSS e no Bloco Leste. Mas revela ainda o elemento fundamental do nosso tempo: perante a inevitabilidade de abandonar uma estratégia eleitoralista, institucionalista, bem comportadinha, com propostas responsáveis e enorme sentido de Estado, os reformistas sentem fraquejar a sua carne pequeno-burguesa, acobardada no medinho da confrontação e das nódoas negras da bastonada. Querem enfrentar a nova investida do capital com as armas que usavam na expansão do capitalismo, mais ou menos como um combatente que se apresentasse de elmo, armadura, lança e cavalo branco, para enfrentar os B-52 da Força Aérea estadunidense. Assim não se ganha nunca.

 E este é o problema fundamental que subjaz ao silêncio: o mundo abre-se em novos problemas que exigem novas soluções. A dinâmica da crise arrancou o véu de sentimentalismo piegas, qual cortina cor-de-rosa com póneis, que encobria e justificava a dominação burguesa. O que ficou a descoberto nos últimos anos, descarnadamente, foi a disposição da burguesia a quebrar quaisquer acordos, quaisquer leis, quaisquer princípios, a um vale tudo menos tirar olhos para conseguir os seus intentos. Isso afogou na água gelada do cálculo mesquinho de que falava Marx as relações entre pessoas na sociedade burguesa, e levantou um problema extremamente aborrecido: o de ser preciso recorrer à força para libertar quem trabalha, posto que quem explora se socorre da força (e da força bruta) para o fazer. Para gente curtida e treinada nos salões atapetados da discussão amável, da negociação engravatada, que espera persuadir pela força dos argumentos e pela sedução da forma de os comunicar, há-de doer como uma patada nos dentes perceber a inutilidade do acervo de conhecimentos acumulados nessas matérias perante uma guerra, aberta e literal, onde a ilegalidade será uso e costume e a violência física um método tão recorrente quanto for preciso. É por isso pouco surpreendente que, para o evitar, essa esquerda antes queira fazer de feitor do patrão, enquanto nos promete que chorará, condoída, o fado dos escravos que oprime.

 Em conclusão, esta esquerda não nos serve para coisa nenhuma. Não percebe que o tempo dos paninhos quentes já acabou, se é que alguma vez existiu, e não entendendo o problema, naturalmente, sugere uma metodologia incorrecta para o resolver, que inevitavelmente conduz ao syrizismo de coloração mais ou menos amarelada. Recentrar a discussão sobre bases que rejeitem o reformismo, compreendam a ofensiva burguesa em curso e as respostas que ela exige, ao nível da organização popular e das formas de luta a empregar, é uma questão de estrita sobrevivência.

Um poema para ti, hoje!

AMIGO

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!

«Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já, uma grande festa!

Alexandre O'Neill